sábado, 2 de abril de 2011

de profundis amamus

"Ontem às onze fumaste um cigarro encontrei-te sentado ficámos para perder todos os teus eléctricos os meus já estavam perdidos por natureza própria Andámos dez quilómetros a pé ninguém nos viu passar excepto claro os porteiros é da natureza das coisas ser-se visto pelos porteiros Olha como só tu sabes olhar a rua os costumes O Público o vinco das tuas calças está cheio de frio e há quatro mil pessoas interessadas nisso Não faz mal abracem-me os teus olhos de extremo a extremo azuis vai ser assim durante muito tempo decorrerão muitos séculos antes de nós mas não te importes não te importes muito nós só temos a ver com o presente perfeito corsários de olhos de gato intransponível maravilhados maravilhosos únicos nem pretérito nem futuro tem o estranho verbo nosso" Mário Cesariny

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

"Eu não quero ver você cuspindo ódio, eu não quero ver você fumando ópio para sarar a dor.
Eu não quero ver você chorar veneno, não quero beber o teu café pequeno.
Eu não quero isso, seja lá o que isso for.
Eu não quero aquele eu não quero aqui, peixe na boca do crocodilo, braço da Vénus de Milo acenando tchau.
Não quero medir a altura do tombo, nem passar Agosto esperando Setembro.
Se bem me lembro o melhor futuro, este hoje escuro. O maior desejo da boca é o beijo. Eu não quero ter o Tejo me escorrendo das mãos. Quero a Guanabara, quero o rio Nilo, quero tudo ter estrela, flor, estilo, tua língua em meu mamilo, água e sal.
Nada tenho, de vez em quando tudo, tudo quero mais ou menos quanto. Quero viver, quero ouvir, quero ver... (Se é assim quero sim, acho que vim para te ver)"


Zeca Baleiro

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Torcicolo

"A mulher do Rei, que gostava de passear pelo reino a ver como iam as coisas, um certo dia fez um pequeno torcicolo no pescoço que a impedia de rodar a cabeça. Como o pescoço da Rainha não melhorava o Rei ordenou que todo o país começasse a funcionar em trajectórias circulares à frente da varanda do palácio."




Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Brecht"

Um homem

"Num certo país apareceu um homem com duas cabeças. Foi considerado um monstro, e não um homem.
Noutro país apareceu um homem que estava sempre feliz. Foi considerado um monstro, e não um homem."


Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Brecht"