sábado, 19 de junho de 2010

Saramago

Seria uma crueldade deixar passar em branco o dia de ontem.

O mundo das artes tornou-se infinitamente mais pobre desde o dia dezoito de Junho. Desapareceu um dos maiores escritores portugueses de sempre, o único capaz de igualar Eça e Pessoa. Não consigo descortinar razões que me impeçam de o dizer : Saramago foi um GÉNIO no sentido mais puro da palavra, e decerto assim será recordado pelas gerações futuras. Desejo muita paz a todas as medíocres almas que se insurgem contra as homenagens que a Saramago são prestadas, afirmando que foi a sua postura sempre crítica um desrespeito pela cultura portuguesa e negando o contributo ímpar da sua obra para as literaturas portuguesa e mundial.

Creio que Portugal não soube jamais reconhecer a genialidade desta sua personagem ribatejana, e por assim ser apetece-me usar as palavras escritas pelo próprio Saramago a respeito de Maria João Pires : "não teve muita sorte com o país onde nasceu." Este filho adoptivo das ilhas Canárias, este homem de modestas origens foi a personificação da eloquência e de uma postura cívica notável, manifestando por numerosas vezes o seu apoio a causas de defesa dos direitos humanos e a sua admiração pelos vultos cimeiros da cultura nacional e internacional e, enfim...o mundo é mais triste desde a sua partida. Eu sou deveras mais triste desde a sua partida, as minhas leituras ficarão mais pobres agora que já não está entre nós.

Há quem nasça definitivamente com uma estrela especial, talhada para marcar e mudar o mundo, e Saramago era por certo uma dessas pessoas. E agora, neste momento de profundo pesar e de vénias infinitas perante o seu legado, é com emoção que se pasma perante a simplicidade daquele cuja vontade mais profunda é a de ser relembrado como o homem que criou o cão das lágrimas e cujo desejo final se reduz a um tranquilo repouso debaixo de uma árvore no jardim da sua casa em Lanzarote, sem qualquer inscrição, e que de quando em vez lá lhe coloquem uma "florzita" para que não sinta que foi esquecido. Fique descansado, senhor José Saramago, que o esquecimento é palavra que não se usa quando de pessoas como o senhor se fala, e sim, será recordado não como o homem que criou o cão das lágrimas, mas sim como o próprio cão das lágrimas que tão bem soube consolar a mulher do médico no "Ensaio sobre a cegueira". Até sempre.

Saramago

Missa de Aniversário

"Há um ano que os teus gestos andam
Ausentes da nossa freguesia
Tu que eras destes campos
Onde de novo a seara amadurece
Donde és hoje?
Que nome novo tens?
Haverá mais singular fim de semana
Do que um sábado assim que nunca mais tem fim?
Que ocupação é agora a tua
Que tens todo o tempo livre à tua frente?
Que passos te levarão atrás
Do arrulhar da pomba em nossos céus?
Que te acontece que não mais fizeste anos
Embora a mesa posta continue à tua espera
E lá fora na estrada as amoreiras tenham outra vez florido?

Era esta a voz dele assim é que falava
Dizem agora as giestas desta sua terra
Que o viram passar nos caminhos da infância
Junto ao primeiro voo das perdizes

Já só na gravata te levamos morto àqueles caminhos
Onde deixaste a marca dos teus pés
Apenas na gravata. A tua morte
deixou de nos vestir completamente

No Verão em que partiste bem me lembro
Pensei coisas profundas
É de novo verão. Cada vez tens menos lugar
Neste canto de nós donde anualmente
Te havemos piedosamente de desenterrar
Até à morte da morte"


Missa de Aniversário, de Ruy Belo


Ruy Belo tornou-se, nos últimos tempos, um autor de eleição para mim. A sua obra, história e pensamento despertam-me uma grande curiosidade. Achei este poema de uma beleza sublime; apaixonei-me por ele à primeira leitura e reli-o inúmeras vezes em voz baixa, em alta voz e em sussurros. Não creio ter lido muitos textos que tão bem descrevessem a perda de alguém e o vazio deixado pelo seu desaparecimento...